Anderson
Morais
PERMITIR O AFETO
A linha curva do desejo
A exposição “ PERMITIR O AFETO”, de Anderson Morais, é o resultado de um processo de acompanhamento crítico e curatorial de uma prática artística comprometida com a insurgência dos afetos dissidentes. Trata-se de um recorte de uma pesquisa visual que articula bordados, pinturas, fotografias, objetos têxteis, vídeos e resíduos performáticos como instrumentos de enfrentamento simbólico às normativas de corpo, desejo e afeto. Nesse processo, o artista constrói uma cartografia íntima e coletiva que tensiona os dispositivos que tentam capturar, higienizar e silenciar os amores desviantes.
A produção de Anderson é, desde sua raiz, uma recusa frontal à heterossexualidade compulsória — regime político que regula os corpos, controla os desejos e impõe uma vida retilínea, previsível, disciplinada. Essa linha reta — normativa, patriarcal, cisheteronormativa — é interrompida aqui por linhas curvas, torcidas, bordadas. O desejo homoafetivo que se afirma nas obras é um desvio, uma fuga, uma torção que desafia o que se espera, o que se permite, o que se tolera. É uma recusa radical a obedecer às coreografias da obediência.
Essas linhas curvas se materializam de modo visceral nas obras: os fios que perfuram o tecido são também aqueles que perfumam a subjetividade. São linhas de penetração, sim, mas também de criação, de cura e de subversão. Bordar uma imagem é bordar a si mesmo. O bordado, historicamente associado à domesticidade e à submissão, aqui se inscreve como prática contra-hegemônica. Suspende o tempo linear e impõe outro ritmo à experiência. Convida ao recolhimento, mas também à radicalidade do gesto de se permitir sentir. É nesse gesto que o desejo, tantas vezes silenciado, explode em forma, cor e matéria. O bordado torna-se um canal de libertação dos desejos reprimidos.
Deleuze e Guattari nos lembram, em “O anti-Édipo”, que toda sociedade organiza-se a partir da repressão do desejo. As instituições — família, escola, Estado, religião — operam como aparatos de captura que aprisionam a potência desejante nas estruturas do poder. O Édipo é uma dessas máquinas: transforma o desejo em culpa e molda o sujeito à imagem da normalidade. Mas há sempre fuga. A homossexualidade, nesse contexto, é uma linha de fuga: ela escapa, contamina, reinventa. Nas mãos de Anderson, o desejo se torna força produtiva — cria mundos, desestabiliza fronteiras, afirma vidas que se querem plenas.
Em diálogo com Georges Bataille, podemos compreender o erotismo presente nos trabalhos não como simples exercício de prazer, mas como dimensão espiritual, ritualística, quase mística. A religião, ao longo da história, operou como grande aparelho de contenção do desejo: transformou o corpo em objeto de vergonha, o afeto em pecado, o prazer em punição. Anderson, no entanto, aciona os mesmos elementos — o sagrado, o ritual, o mistério — para operar em sentido oposto: sua arte não aprisiona, liberta. Não moraliza, celebra. Sua obra é uma espiritualidade sem dogma, uma fé no desejo como potência vital.
Permitir o afeto é reativar a capacidade de sentir, mas também de resistir. É afirmar que o afeto é político. Em tempos de necropolítica, precarização da vida e normatização das subjetividades, amar livremente — sobretudo entre corpos dissidentes — é um gesto de insurgência. Os corpos que Anderson borda, pinta e inscreve exalam desejo, estão saturados de energia vital, e essa energia circula entre eles como fluxo desejante, como contágio. Franco Bifo Berardi fala da necessidade urgente de reerotizar a existência, de reconectar o corpo ao prazer e ao afeto como formas de resistência à anestesia generalizada da sensibilidade. Anderson responde a esse chamado com agulha e linha.
A homossexualidade é experiência ancestral, presente em centenas de espécies animais. Os animais, livres das amarras morais humanas, nos ensinam que o desejo é natural, é cósmico. A imagem do animal aparece, então, como metáfora de libertação — uma chamada à desconstrução do humano normativo. Desejo não é atributo humano: é pulsão da vida, força vital, monstruosidade criadora. É preciso libertar todos os monstros.
“O desejo é um animal em chamas”, escreveu Philippe Besson. João Silvério Trevisan nos fala do desejo como uma força selvagem, indomável, que escapa das estruturas que tentam aprisioná-lo. Ele escapa, escorre, se reinventa. Anderson compartilha dessa visão: seus trabalhos não domesticam o desejo, mas o deixam escapar pelas frestas do tecido, pelas palavras bordadas, pelos rastros das performances. É um desejo que não se dobra, que não se desculpa, que insiste em existir — mesmo quando tudo ao redor conspira para seu silenciamento.
E, como nos lembra bell hooks, a beleza pode ser uma prática de subversão. A arte que emerge da dor, do afeto, da memória e da vulnerabilidade pode nos ensinar a resistir. Anderson não oferece respostas nem obras acabadas, mas espaços para que a experiência aconteça, para que a lembrança se instale, para que o corpo vibre. Sua arte é política porque é íntima. Porque nos convoca à partilha. Porque nos lembra que amar é, sempre, um ato de coragem. E que, sim, Permitir o afeto é desobedecer.
Lucas Dilacerda
Curadoria, AICA - International Association of Art Critics








Exposição VÓRTEX



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